sábado, fevereiro 24, 2007

Ela acordou estranha.
Estranha era um adjetivo que a acompanhava havia bastante tempo, em visitas menos ou mais freqüentes, sem grandes lógicas de chegada ou partida.
Não tinha nenhuma relação com bem ou mal, apesar de seu relato despertar, quase invariavelmente, uma certa preocupação nos amigos.

es.tra.nho adj. 1. Fora do comum; desusado. 2. Que é de fora; estrangeiro; alheio. 3. Singular; extravagante. 4. Misterioso.

Bobagem dos queridos!
Depois de um tempo de preguiça manhosa enrolada no edredon desabraça o travesseiro e percorre aquele quarto com o olhar.
Retalhos de dia invadem o teto branco através da janela perfurada.
Não sabe dizer ao certo se é um dia cinza ou colorido.
Nenhum ruído especial acrescenta dados para uma conclusão precisa.
Na verdade não a deseja.
Prefere a incerteza até abrir as janelas.
A do quarto e a sua.
Tinha dormido tarde.
Na verdade quase sempre dormia tarde, mas o sono tinha parecido desnecessário na noite anterior, uma invasão, como prótese pra quem sequer usa bengala.
Teria passado toda a noite acordada.
Obrigou o corpo e a mente a uma pausa, repouso, descanso.
Agora aquela preguiça de despertar por inteiro...
O resto de cheiro de cigarro no cabelo a lembrava que havia desistido de lavá-lo antes de se deitar.
Não gostava do cheiro de cigarro mas ele não a impedia de estar em nenhum lugar.
Os amigos, a música, a dança, tudo parecia maior que aquele incômodo.
Levantar.
Era preciso levantar.
Será mesmo?
Mais cinco minutos de dúvida, mais cinco minutos de “se deixar ficar”.
Agora o rosto no espelho do banheiro.
Parecia o rosto de outra pessoa.
Muitas vezes aquele rosto parecia outro, como se transfigurasse ao longo do dia.
Com os cabelos presos leva as mãos em concha até o fio de água que corre da torneira.
Repete o movimento algumas vezes até se satisfazer com o frescor oferecido.
Rosto molhado, pés descalços, sobre o corpo aquela camiseta esquecida e nas mãos um copo d'água.
Sempre um copo d'água ao acordar!
Não tinha nada a ver com ressaca, com a noite anterior, era hábito adquirido, nem lembrava ao certo a quanto tempo... Quando criança...
Ouviu um dia do pai que era preciso “acordar” o corpo com um copo d'água.
“A primeira coisa deve ser a água. Antes do café da manhã.”
Foi assim que começou...
Agora o cheiro bom do café forte que acabava de sair da cafeteira italiana.
Invadindo a casa, a invadindo...
A torrada de pão preto, a manteiga derretida, as frutas com granola na louça branca.
As flores na mesa.
O apartamento está vazio. Ninguém além dela.
Mesmo assim o “ritual”, com carinho, com cuidado, com prazer.
Carinho por ela, cuidado dela, seu prazer...
Sobre a mesa alguns cds “esquecidos” e entre eles Morphine. Cure for Pain.
Lembrou “daquele” e pensou “nele”.
Eram muito diferentes, quando se olha rapidamente, mas ela os tinha olhado um pouco mais que a maioria das pessoas...
Os dois traziam uma dor, um peso, uma solidão...
Não sabiam, entendiam, permitiam o “ser feliz”.
Sem dúvida formas diferentes de lidar com tudo isso, de se perceberem no tudo isso!
Já a dor...
Havia tentado ser sopro.
Acabou retirando fuligens que depois de ausentes permitiam um enxergar que doía.
Sua leveza parecia causar muitos “estragos” naqueles placebos de vida...
Mais uma vez?
Será?
Talvez fosse melhor parar...